quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Um dia na Ecoaldeia (um sonho acordado)

Como de costume acordo hoje ao cantar do galo da Maria, autêntico despertador sem botão de desligar (até que a morte nos separe). É fácil conviver com tão simpático bicho, pois todos sabemos que ovos galados são mais saudáveis e alguém tem de fazer o serviço. Foi uma discussão acesa (como de costume) até todos aceitarem que era um mal menor para quem utiliza ovos (a maioria), desde que o bicho morresse de morte natural, os defensores dos animais foram radicais nisso. Acho que o que mais pesou foi todos sabermos que há muito trabalho a fazer e isso bastar para nos chamar ao dever sem ninguém a cucutar-nos, sem despertador ou relógio (que ninguém usa, até porque o estridente sino da aldeia vizinha ouve-se cada meia hora).
O sol ainda não tinha acordado mas já se via algumas chaminés a fumegar com os preparativos do café da manhã ou lá o que comiam. Depois de algumas experiências chegamos à conclusão que aqui, como na informática, a política do grande caldeirão donde todos comem não era a mais maleável,saborosa e saudável, porque foram nascendo cozinhas em quase todas as casas, pelo menos para as pequenas refeições. Os pequenos “rocket stoves” já crepitam nalgumas chaminés, a azáfama é grande pois hoje temos o dia semanal de trabalho comunitário, com uma carrada de problemas a resolver. Na véspera tínhamos acertado os trabalhos e os grupos (com alguma discussão, ainda há gente que adora protagonismo ou com alergia a alguns trabalhos), por isso os nossos aldeões começaram a reunir-se nos sítios combinados (a maioria na oficina ou no bar), distribuindo-se alfaias e tarefas.
Custou a implementar a ideia de haverem responsáveis eleitos, mas na hora do “vamos a ver” é que todos sentem a sua utilidade, era uma anarquia, horas de discussão para fazer qualquer coisa de palpável. È claro que a tentação dos líderes se imporem como “chefes” ou não se quererem chatear ainda existe, ainda temos muito a aprender, mas cada vez menos se discute por tudo e por nada e isso é muito bom para a Paz desta aldeia (que por pouco não se chamou “Ecoaldeia da Paz” em honra do santuário mais próximo).
Mesmo assim o meu grupo não se entende, alguém propôs fazermos um pouco de meditação até ao nascer do sol. Parece que resulta, em vez de perdermos tempo em discussões inúteis (ma maioria), acalmamos os espíritos exaltados e talvez ganhássemos tempo. Saudamos o sol e finalmente pômo-nos a caminho: tínhamos decidido refazer o sistema de rega, bastante danificado por 20 anos de abandono total, e havia muito a fazer desde alargar a represa, repor as pedras caídas, arranjar um canal novo até ao centro da aldeia (chamamos-lhe ponposamernte o Rossio). Eramos por isso um grupo numeroso que logo se dividiu quando foi aconselhável. Alguém se lembrou de cantarmos as músicas que vamos cantar na festa  que queremos dar este fim de semana, aberta como sempre aos amigos e vizinhos de fora, penso que vai haver também baile além das cantorias, pantominas e tambores. Se fizer bom tempo há-de ser ao ar livre, ao calor e luz da fogueira tem outro valor.
Nestes dias todos temos refeição em comum, na cantina do retiro. Foi pacífico partilharmos só refeições vegetarianas, mas custou a acertarmos com um menu flexível que agradasse tanto os Vegans como os macrobióticos. O mais difícil é contentar os adeptos da raw-food (crudívoros), felizmente temos saladas e frutas em abundância que os hortelãos da aldeia (quase toda a gente) fornece em quantidade e qualidade (bio, nem se discutiu isso, não fossemos todos partidários da agricultura natural, permacultura ou afins).
A tarde está quente, felizmente que decidimos trabalhar à sombra de tarde, ao sol de manhã. Mesmo assim temos ainda muito trabalho pela frente a escavar os troncos com as enxós, “era mais prático comprar uns canos de plástico” alguiém murmura em desespero. Mas todos sabemos que já foi muito ter-se aceite utilizar a moto-serra para abater as árvores e tirar os ramos maiores (o que um pequeno grupo já tinha feito há tempos, para poderem secar), e acabou por se apanhar o jeito de fazermos os entalhes e as uniões, vamos lá ver se resultam.
O que vale é que estamos todos bem dispostos, contam-se umas anedotas, algumas fofocas próprias do espírito de aldeia que já estamos a apanhar, nada de ofensivo. Às 5 (bendito sino!) abandonamos o trabalho e levamos as ferramentas, orgulhosos de termos quase a obra concluída, talvez os voluntários estrangeiros (2 para já) consigam acabar o que falta.
Reunimo-nos quase todos no bar para tomar uma bebida, conversa mole, jogar qualquer coisa ou navegar na net. Fui à minha aula de Yoga, é bom termos esta troca de saberes entre nós, eu também tenho dado os meus workshops quando mos pedem. Temos de pensar seriamente em criar uma moeda local, não é muito prático estarmos a apontar as horas que nos devem ou que devemos destas partilhas, é complicado.
Como de costume janto em casa, bem cedo, um chá e umas torradas bastam-me para matar a fome. E que bom é este pão caseiro que eu fiz, mas está a acabar. Amanhã tenho de conversar com os “padeiros” da aldeia, a ver se combinamos uma fornada em comum, sempre se poupa lenha e trabalho.
Como sempre o bar está animado à noite. O João toca uma viola com um coro de meninas à volta, aparece o Ricardo com a sua gaita de beiços a improvisar um “blues”, parece que tocam ao desafio. Não me apetece ir buscar a viola, por isso experimento acompanhá-los nos tambores do bar, não tenho mesmo jeito nenhum.
Ainda espreito a net antes de me deitar, mas estou cansado de me deitar tarde ontem (muito se discute!) e da “porrada” de hoje, amanhã é outro dia de ganha pão lá fora. Não está fácil a sobrevivência, mas cá nos vamos arranjando, pois que com a ajuda da Cooperativa que nos deu alguns meios no início, quase todos arranjamos actividades onde ganhamos algum dinheiro, tivemos é de aprender quase todos a viver com menos (luxo, dinheiro, saídas,…), mas felizmente também com mais ar puro, alegria, amor, sustentabilidade, etc, etc, etc...

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